Terra à vista!
- Ursula Vidal
- 19 de jan. de 2023
- 3 min de leitura
Atualizado: 24 de jan. de 2023
Enquanto pilhamos, emporcalhamos e acumulamos, olhamos para um pedaço idílico do planeta onde, a cada duas horas se descobre uma nova espécie de planta ou animal.

POR URSULA VIDAL
Quando Colombo, Vespúcio, Cabral e companhia cruzavam os mares da Terra eram movidos pelo desejo de ir além. E mais além. E descobrir, e conquistar e aprender e... pilhar.
Cinco séculos depois da era das grandes navegações, nossa tacanha civilização transgênica e cibernética ficou presa numa espiral estúpida. Porém, agora não só pilhamos, como emporcalhamos.
Tudo que é país que tem juízo está mirando uma economia de carbono neutro até 2030, 40, 50. Seja por força das circunstâncias internas – leia-se: pressão social -, seja por força de alguns mercados consumidores, que já torcem o nariz pra quem produz de maneira dissociada dos protocolos impostos pela crise climática. Ser sustentável em casa e esculhambar o quintal do vizinho tem sido uma prática bem desavergonhada dos países ricos, que verticalizam com responsabilidade e alta tecnologia nas suas cercanias e esburacam, poluem e exploram solo e mão de obra nos territórios dos primos pobres.
E a geopolítica mundial é simples como uma fatia de pão cortada ao meio: na parte de cima, o norte rico, elegante, poliglota e industrializado. Na fatia de baixo, o sul global, de onde saem minérios, combustíveis fósseis, grãos e os ritmos mais fantásticos do planeta. Tá, tudo bem; já tem fundo prometido de 100 bilhões de dólares, por ano, pra compensar os menos industrializados – só que esse dinheiro nunca chegou. Ok, ok; já estamos organizando um cálculo global de perdas e danos – só que a conta ainda não fechou.
"Dados do IBGE apontam que, em 2017, a área plantada de soja na Amazônia cresceu quase 60% e a área plantada com pastagem aumentou mais de 19%".
Certa vez eu entrevistava um pesquisador sobre os efeitos nefastos do aumento da temperatura média do planeta nas zonas costeiras e no equilíbrio do ciclo hidrológico em áreas agricultáveis. Me mostrei preocupada com o risco de queda na produção de alimentos, com o perigo da fome. E ele me lembrou que já vivemos a fome. Que, segundo a ONU, já temos quase 90 milhões de refugiados em todo mundo. Conflitos e guerras motivados pela disputa de territórios de onde se extraem combustíveis fósseis e minérios. Em fronteiras agrícolas onde se produz soja, milho e pasto. Essas áreas só aumentam, assim como a pobreza, a fome e o número de jatinhos, helicópteros e iates comprados à vista. É pra salvar nossa espécie que estamos virando a chave para uma economia verde ou é pra abrir novos mercados para a tecnologia produtiva de baixo carbono?
Porque se a resposta tiver motivação humanitária, nossos líderes e chanceleres que firmam protocolos ambientais nas COPs poderiam incluir na agenda de trabalhos visitas providenciais aos campos de refugiados na Etiópia, no Quênia, na Mauritânia, ou mesmo nas ruas de São Paulo.
Enquanto pilhamos, emporcalhamos e acumulamos, olhamos para um pedaço idílico do planeta onde, a cada duas horas se descobre uma nova espécie de planta ou animal. Uma massa estupenda de ar, água, bicho, flora e gente, com 112 milhões de hectares protegidos em Terras Indígenas e Unidades de Conservação. E sabe qual a maior riqueza produzida nesta linda região: soja. Dados do IBGE apontam que, em 2017, a área plantada de soja na Amazônia cresceu quase 60% e a área plantada com pastagem aumentou mais de 19%. Seria esta trajetória de curva ascendente uma miopia trágica, já que, de acordo com estudo do BID, só no Pará, segundo maior estado da Amazônia, a bioeconomia pode gerar até 150 bilhões de reais em receita, até 2040?
Enquanto buscamos responder o óbvio, os Vespúcios e Colombos da modernidade vão navegando nos mares virtuais do mercado financeiro, desbravando novas terras e novos povos para pilhar, até que tudo vire água e já não se possa gritar: “Terra à vista!”
Sobre os autores
URSULA VIDAL é jornalista, cineasta e ativista socioambiental; liderança climática pela Al Gore’s Climate Reality Project, atualmente é Secretária de Cultura do Pará. Entre 2019 e 2021 presidiu o Fórum Nacional dos Dirigentes e Secretários de Cultura.
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