Reinventar a economia e a política para curar o Brasil
- Ursula Vidal
- 19 de jan. de 2023
- 4 min de leitura
Atualizado: 6 de mar. de 2023
Reinventar a economia e a política gerará efeitos regenerativos nos territórios físico e simbólico – uma cura do corpo e da alma do Brasil.

POR URSULA VIDAL
O Brasil enfrenta uma crise social sem precedentes. Os índices são gravíssimos no acesso à comida, à moradia, ao emprego, à dignidade mínima para a sobrevivência. Lembremos que todos esses direitos são garantidos na Constituição Cidadã de 1988, que anda queixosa de ter virado letra morta na vida real de quase metade da população do país. Temos deveres de casa urgentes e a proposta aqui é estabelecer conexões entre os investimentos públicos possíveis e as práticas culturais e cotidianas do chão do Brasil.
Cultura é o amplo conjunto de ações, hábitos, tradições e inovações que empregamos pra viver em coletividade. É isso que apoia a proposta de transversalidade. Por isso ela dialoga diretamente com programas de combate à fome, de preservação de biomas, de posicionamento internacional.
Quando essas relações são enxergadas e legitimadas, fica mais fácil compreender porque as pautas da habitação, do saneamento e da mobilidade urbana tem profunda conexão com as emergências da agenda climática, com as tecnologias sociais desenvolvidas nos territórios urbanos e rurais e com as abordagens da comunicação comunitária, pautada pelos movimentos sociais e pelas juventudes e suas inovações culturais.
Comecemos pelo teto que nos protege do sol e da chuva e nos garante a segurança de um lar. Como garantir a função social da propriedade e o direito à moradia das famílias, num país com 178 mil pessoas em situação de rua, mais de 1 milhão de pessoas despejadas ou ameaçadas de despejo, no campo e na cidade, durante a pandemia; com um déficit habitacional de 5,9 milhões de domicílios e outros 24,8 milhões padecendo de algum tipo de inadequação? E entre os mais vulneráveis, quem tem teto vivendo em situação suscetível às intempéries, com mais de 5,1 milhões de domicílios em aglomerados subnormais?
Não basta garantir a casa com telhado, porta e janelas – é preciso prover políticas públicas que promovam qualidade de vida e que assegurem o conjunto educação, saúde, cultura, arte, esporte e lazer, incluindo a urbanização de assentamentos precários. Sem esquecer da urgente regularização fundiária associada à urbanização e o desenvolvimento de modelos mais inovadores e eficientes de assistência técnica para melhoria habitacional.
Lafargue seria preso diversas vezes por, entre outras coisas, incitamento à rebelião.
Pensamos grande porque a escala da máquina e dos investimentos públicos é sempre mastodôntica. Não pensamos o bairro, a rua, o polígono territorial. Quando o sinal de alerta acende diante da burocracia disfuncional do estado e da política de descontinuidade, é difícil saber por onde começar. O Brasil do futuro tem hoje 35 obras de urbanização ou produção habitacional que mobilizam cerca de R$ 1,43 bilhão em repasses da União com risco de paralização. Um impacto grave na vida de cerca de 120 mil famílias, que pode gerar custos adicionais (recuperação de depredação/deterioração e de remobilização para a retomada), prejuízos para as empresas contratadas, redução de postos de trabalho e atrasos nas entregas aos beneficiários.
Além disso, a paralisação dessas obras de urbanização contribui para a piora das condições já precárias dessas comunidades, com a geração de entulho e disrupções do movimento cotidiano. Há ainda o risco de aumento dos vetores de doenças infecciosas. É uma tragédia socioambiental muito mais grave do que é capaz de demonstrar uma planilha de Excel.
Agora a boa notícia: os programas de habitação tem potencial de gerar 1,5 milhões de empregos anuais. E o esforço orçamentário e financeiro da União foi significativo, antes do pesadelo político que se abateu sobre nós - o que prova a importância de um estado indutor do crescimento econômico. De 2003 a 2016, o Governo federal investiu R$ 715 bilhões em saneamento, mobilidade, prevenção de riscos e habitação - uma média de R$ 50 bilhões ao ano. Desse total, R$ 200 bilhões, só na ampliação das malhas urbanas. Porém, há aspectos preocupantes quanto às decisões políticas num Brasil que precisa descarbonizar sua arquitetura de mobilidade urbana: esses investimentos foram destinados a projetos que cobriam 3.204 Km de transporte sobre pneus e somente 21 quilômetros de transporte fluvial. Num país que tem 42 mil Km de rios potencialmente navegáveis!
Como incentivar a estruturação de uma rede multimodal de transporte - um dos pilares para a implementação de grande parte dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)? Qual o modelo econômico e de desenvolvimento necessário para alavancar oportunidades sociais e criar capacidade distributiva?
Existe uma multidão de novos atores na área da cultura, vindos das múltiplas periferias brasileiras, que desejam e precisam encontrar meios de tornar seus trabalhos sustentáveis. E que tem plena capacidade de potencializar as entregas, ações e programas públicos, por meio de coletivos, associações de bairro, ONGs, grupos e espaços de cultura e arte. São competências já instaladas e em plena atividade que podem dar mais efetividade para a qualificação urbana compartilhada com a comunidade, a formação de mão de obra e a gestão inovadora e inclusiva dos resíduos sólidos.
O Ministério das Cidades tem hoje em sua carteira de programas, pilares fundamentais para edificar uma política estruturante na garantia do bem estar da parcela mais vulnerável da população brasileira: Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), de Aceleração do Crescimento (PAC), de Mitigação e Prevenção de Riscos e Desastres, de Regularização Fundiária e Melhoria (REGMEL), Programa Aproxima, voltado para a locação social; Programa Pró-transporte FGTS (Avançar Cidades – Mobilidade Urbana), Programa Saneamento para Todos. E há uma urgência em avançarmos nos programas de fomento à modernização de manejo de resíduos sólidos, de saneamento rural e de Inclusão urbana e social das periferias.
Uma urgência na atenção às agendas estruturantes de mobilidade. Nesta área, os dados são ainda mais desanimadores: somente 18% dos 2024 municípios que tem obrigatoriedade prevista em lei elaboraram seus planos de mobilidade urbana.
Só com a participação ativa da sociedade local e suas dinâmicas de ocupação dos espaços públicos compartilhados e de deslocamento é que vamos avançar na segurança viária, na moderação de tráfego, na educação e saúde para uma mobilidade urbana que respeite as pessoas, além dos veículos.
Se o casamento entre o econômico, o social e o ambiental abrir generosamente os braços para o cultural, como pilar da economia do conhecimento e de valorização dos saberes locais – veremos um rio de possibilidades fluindo na direção do mundo futuro. De um Brasil mais justo, inventivo e, principalmente, não-violento e afetivo.
Sobre os autores
URSULA VIDAL é jornalista, cineasta e ativista socioambiental; liderança climática pela Al Gore’s Climate Reality Project, atualmente é Secretária de Cultura do Pará. Entre 2019 e 2021 presidiu o Fórum Nacional dos Dirigentes e Secretários de Cultura.
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